segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Aquele Cara

Para Clélio

Encontrei aquele cara numa estrada da vida há uns 30 anos
Lá pela Bahia ou perdido pelo Rio de Janeiro, não lembro
Cabelo “Black-power”, bigode e fita no pulso
Camiseta branca, chinelo de dedo e uma calça jeans surrada
Não era bonito, mas era muito bacana
Muito mesmo
Aquele cara e eu seríamos melhores amigos se há trinta anos eu existisse
Tenho certeza
E mesmo sem existir, eu gostava da companhia
Conversávamos como dois velhos conhecidos
Contando histórias e não escondendo nada
Sem medo, sabe?
Um amigo mais velho
E já existindo eu passei a amá-lo
Mas como se ama um homem?
Pelo simples fato de ser homem?
Nunca me ensinaram
Mas o amor virou espelho
O caminho virou seta
As idéias viraram luz
A letra escrita mesmo longe
O amor que se construiu
Não por ser sentimento puro
Mas por ser mérito
Amor de admiração
Que por mais que paterno
É pelo que é
Não só pai
Mas homem
Não por agora
Sempre

O Último Episódio

Não sabia seu nome
Mas podia ser Ulisses, ou qualquer coisa
Era tarde já, tinha chuva
Tinha bebido
E tinha outro carro
E tinha dias cada vez piores
Os amigos chocados
A família perplexa
Mas ele permanecia ali, deitado
Mudo, sedado
Com ajuda de aparelhos
Em um pedaço de pano verde
E esparadrapos grudados na cabeça
E o tempo apagava a história
O segundo contra as décadas
Já não sabia seu nome
Quando ele despertou
E se levantou
Estava vestido como fim de festa
Camisa amassada e aberta, não tinha mais gravata
Smoking preto
Descalço
Saiu da sala
Caminhando lentamente por entre as pessoas
Que tristes não o viam
E ele permaneceu impávido
Andava
E não olhava mais pra trás
Rumo ao topo do prédio
Subiu as escadas devagar
Como sonâmbulo
E ao manter-se em pé no parapeito
Um cigarro aceso na mão
Era a primeira vez que ele olhava pra cima
Olhou a lua, linda
Sentiu a noite sem frio
E olhou a cidade
Um seio de índia era modelado pelos rios
O cigarro acabou
Ele sorriu
Sorriu e pulou
E foi caindo
Vagarosamente
De braços abertos
Sorrindo
E voou
Voou como Peter Pan
E foi rasante pela cidade iluminada de luzes amarelas
Lembrou de cada pedaço de vida e de história que vivera ali
E foi rumo ao rio
Sobrevoando, sentindo o vento na cara
Passava próximo à água
A tocava como se estivesse sentado em uma canoa
E fazia caminho como se fosse barco
Mas voava
E ia cada vez mais alto
Sorria
E olhava a lua
Ouviu o chamado que ela lhe fazia
E subia
Ia em sua direção
Foi ficando cada vez menor à minha vista
Lentamente foi se tornando um ponto sobre ela
Até que sumiu
E não sabiam seu nome mais
Mas sabiam que ele estava lá ainda
Olhando pra nós
E sorrindo

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Conversas com Jaci

Ele lembrava da primeira vez que realmente a viu
“Depois de terminar aquele livro”
Faz tempo, muito tempo
Desde então, passava noites só olhando
Como se seus pensamentos pudessem ser ouvidos
E apesar de dizer sempre muito
Era o silencio que respondia
Até que um dia...
É, um dia...
Parece mentira,
Mas ela respondeu
A noite estava linda
Do terraço do edifício era possível ver Belém iluminada como brasa
Na mão, um cigarro com gosto de memória
As tragadas forçavam suspiros meio reflexivos
Olhava pro céu, adorava aquele cenário
E ela tava linda, lá em cima, grande
Em meio a pensamentos
Ele suspirou mais uma vez:
- Ah, Jaci, se eu te dissesse...
Baixando a cabeça e olhando pro cigarro, imediatamente ouviu:
- Pode dizer!
Ele se espantou. Olhou pra trás procurando alguém. Nada
Olhou ao redor. Nada.
O silêncio era malmente entrecortado por um latido bem ao fundo.
- Que porra é essa?
- Sou eu, aqui em cima
- Mas como, por quê?
- Por que não?
Atônito, não sabia nem o que falar
- Desde quando, isso?
- Achei que fosse o momento pra responder
Conformado com a irrealidade, ele sorriu meio sem graça
- Ah, filha de Orfeu, e o que tens pra me dizer?
- Pra falar a verdade, não é muito não. Mas o que quiseres saber, acho que posso ajudar
- Sinceramente, não sei. Já falei tanto antes, que acho que já sabes de tudo. Ah, já sei! Por que te afastas a cada dia que passa?
- Não sei, ando meio confusa.
- Ah, já vi que não é à toa que só te dão nomes femininos. Lua, Jaci, Iaci... Bom, gostaria de saber se um dia poderei chegar bem perto. Seria uma coisa bem maluca.
- Acho que não demora muito não, teus amigos já tiveram por aqui, coisa rápida, e nunca mais voltaram. Homens, hum. Pra gostar de mim só cachorro ou doido...
- Ha, Ha, Ha, Há! Não conhecia esse teu lado assim, bem humorado. Mas peraí, eu gosto!
- Eu sei, por isso estamos conversando
- Ainda mais cheia assim, fica mais linda.
- Tá me chamando de gorda?
- Não, não. É só uma questão de iluminação, entende? Eu gosto da parte iluminada. Tem gente que só fala sobre o lado escuro, mas eu prefiro o claro, viu?
- Ah, bom. Sendo assim... Mas sim, fazia tempo que não te via, hein?
- É verdade, andei tendo uns problemas por aí, mas agora tá tudo certo. Vim aqui de novo atrás desse momento de paz.
- Então, às vezes me sinto esquecida um pouco aqui em cima. Ajudei tanto a equilibrar as coisas aí com vocês, mas tem dias que parecem que as coisas aí ficam meio malucas, não sei bem.
- Realmente, a gente ta meio que desfazendo tudo que tu fizeste por nós. Mas eu não sei nem se tem volta esse processo, já tava assim antes de eu nascer, então é meio difícil de resolver.
- Bem que poderias pensar em alguma coisa.
- Prometo que vou tentar, ainda digo que foi a lua que me disse.
- Não disse, só os cachorros e os doidos... “a lua me disse”
- Devo ser meio maluco mesmo... Ou então é esse cigarro aqui...
- Ah, não fique assim, ainda tem conserto, pra ti e pra minha mãe
- Olha, vou te dizer, eu moro aqui. Mas qualquer dia desses, eu vou embora e nunca mais volto, ah se vou!
- Ah, e vai pra onde, bonitinho?
- Praí contigo, ora!
- Ah, não vais gostar. Sou bonita só de longe
- Tudo bem, eu gostei da nossa conversa, é bom ter com quem conversar
- Tá difícil achar alguém assim por aí?
- Tá, pior que tá. Mas não podes me culpar de não tentar.
- Eu, longe disso.
- Ah, mas sem problemas, acontece. Agora que tou te conhecendo melhor, acho que podemos falar mais, não?
- Claro. Enquanto esse mundo aí girar e girar, eu vou estar sempre aqui.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008